“Se queremos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude”
Esta epígrafe é de Tancredi, personagem da obra de Giuseppe de Lampedusa, “O Leopardo”, do século XIX. No entanto, calha bem para a Medida Provisória (MP) N. 808, baixada pela Presidência da República ao dia 14 de novembro corrente — apropriado seria dizer editada; mas, como esse ato legislativo discricionário foi banalizado e, ao fim e ao cabo, acaba exercendo a função do extinto famigerado Decreto-lei, este, sim, baixado, é que se diz o mesmo dos dois —, que altera vários dispositivos da Lei N. 13.467/2017 (reforma trabalhista), que entrou em vigor dia 11 próximo passado.
De tais alterações, pode-se dizer que, dentre as do Art. 1º: umas minoram os danos provocados pela citada lei; uma discrimina os trabalhadores da saúde; uma põe fim à “precificação” da dignidade do trabalhador e que tanto entusiasmava o presidente do TST, que, conforme entrevista à Folha de São Paulo, quer uma sociedade de casta, na qual o trabalhador de baixa renda deva ser tratado como pária; e outras limitam-se a determinar a superioridade das garantias constitucionais, que eram negados pelos dispositivos anteriores.
Já a do Art. 2º da MP, que não consta da lei alterada, pode e deve ser caracterizada como visceral afronta à garantia do direito adquirido (Art. 5º, inciso XXXVI, da CF); à valorização do trabalho humano (Art. 170, caput, da CF); à função social da propriedade (Art. 170, inciso III, da CF); ao primado do trabalho (Art. 193 da CF); à função social do contrato (Art. 421, do Código Civil- CC); aos princípios da probidade e da boa-fé (Art. 422 do CC); ao Art. 9º da CLT, que considera nulo de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos nela; e ao Art. 468, também da CLT, que veda alteração contratual em prejuízo do trabalhador.
Esse famigerado Art. assim dispõe: “Art. 2º – O disposto na Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017, se aplica, na integralidade, aos contratos de trabalho vigentes”. De acordo com o seu conteúdo, todos os malefícios dessa lei podem ser aplicados aos contratos celebrados antes do início de sua vigência, o que quebra todas as estruturas da Ordem Democrática, que só admite a aplicação de normas de direito material aos contratos celebrados após o início de sua vigência. Mais um colossal retrocesso no universo de horrores.
A primeira alteração deu-se no Art. 59-A da CLT, e apenas para repor o comando constitucional do Art. 7º, inciso XIV, da CF, que somente admite jornada de 12 horas, com 36 de descanso, mediante convenção ou acordo coletivo, absurdamente violado pela Lei N. 13.467/2017, que, com a redação anterior, autorizava-a por “acordo individual”. Porém, essa reposição foi apenas parcial, pois que as organizações sociais (OSs), que atuam na área de saúde podem adotá-la por meio de “acordo individual”, o que importa a intolerável discriminação dos trabalhadores dessas.
A segunda alteração de realce ocorreu no Art. 223-G, § 1º, da CLT, para suprimir a odiosa “precificação” da indenização por dano extrapatrimonial (dano moral), que tinha como base de cálculo o salário do ofendido, quebrando o princípio da isonomia, para tratar de maneira desigual os iguais, ou seja, cada ofensa à dignidade do trabalhador valia o quanto pesava, o que implicava tratamento de pária àquele de baixa renda — aplaudido pelo Presidente do TST —, que, pela mesma ofensa, receberia indenização muito inferior ao de maior salário. Pela nova redação, a comentada indenização terá como base de cálculo o teto do Regime Geral de Previdência Social (RGPS), hoje de R$ 5.531,31.
As alterações promovidas no Art. 394-A da CLT, que autoriza o exercício de atividade insalubre para as gestantes e lactantes, efetivamente, não afetaram o seu conteúdo, sendo a rigor apenas de redação, exceto quanto às de grau máximo, deixando aberta a possibilidade de que as exerçam em grau mínimo e médio.
O mesmo se pode afirmar em relação ao Art. 442-B, que versa sobre o contrato autônomo. Nesse Art. a única modificação que merece atenção é a que consta do § 6º, que assevera: “Presente a subordinação jurídica, será reconhecido o vínculo empregatício”.
Todavia, esse dispositivo nada mais faz do que dispor sobre o óbvio, já regulamentado no Art. 3º, também da CLT, que define a subordinação jurídica como sendo a pedra de toque do vínculo empregatício. Agora, pelo menos neste ponto, não há mais antinomia (contradição) entre as normas, o que antes era patente.
As alterações introduzidas na mais vil forma de contratação, que é a do contrato intermitente, autorizada pelo Art. 452-A, com o acréscimo dos Arts. 452-B a 452-G, não modificam a sua natureza e a sua perversidade. Apenas, trazem pífias garantias aos que se submetem a ela, não previstas na redação anterior.
Considerações que estendem às alterações aplicadas ao Art. 457 da CLT, que define os elementos constitutivos da remuneração; a nova redação desse Art. não vai além do acréscimo de migalhas, nem de longe repondo a redação original, que vigeu até o dia 10 de novembro de 2017.
O acréscimo do Art. 510-E à CLT representa um pesadelo a menos para os sindicatos, pois que ele estabelece, com clareza, que a comissão de representantes dos empregados não possui competência para realizar negociações coletivas na defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, quer no âmbito administrativo, quer no judicial, consoante o que preconiza o Art. 8º, inciso III, da CF, sendo, portanto, obrigatória a participação dos sindicatos nas negociações coletivas, conforme determina o Art. 8º, inciso VI, da CF.
A alteração do caput do Art. 611-A da CLT, de igual modo, representa um pesadelo a menos para os sindicatos, haja vista estabelecer, de maneira inquestionável, que somente eles, e ninguém mais, possui competência para firmar convenção e acordo coletivo, o que se acha escrito de forma indelével no Art. 8º, incisos III e VI, da CF; mas que eram subliminarmente negado pela redação anterior, deste Art.
Outra estupidez, contida no Art. 611-A da CLT, corrigida pela MP sob comentários é a que faz dos sindicatos litisconsortes passivos necessários (réus) nas ações judiciais que discutam o conteúdo de convenção e acordo coletivo de trabalho. Antes, as ações poderiam ser de natureza individual ou coletiva; a partir de agora, apenas as coletivas.
Estas são, pois, as primeiras impressões colhidas da análise da MP N. 808/2017, que não passa de mais um presente de grego, notadamente quanto ao seu Art. 2º, bem mais potente do que o famoso cavalo de Tróia da mitologia grega.
Ao debate.
*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee